Arquitetura e Urbanismo, política, Saúde, trabalho

Feijão arroz e agenda.

Sempre me questiono por que apresentações de métodos de organização de trabalho em equipe sempre parecem mais bonitos e eficientes em powerpoint do que quando aplicados na prática.

Um dos motivos que mais assimilo é que gastamos tempos enormes enamorando métodos, assistindo eventos e palestras motivacionais que visam divulgar esses métodos e pouco trabalhamos a singularidade das equipes de trabalho. Quantos de nós somos bons em algo e mal aproveitados por conta da tentativa de se encaixar um método de gestão de trabalho na equipe?

Penso que todos os métodos são interessantes, não precisamos de dogmas sobre isso, são simplesmente ferramentas de trabalho para nos ajudar a moldar melhores jeitos de operar. Nenhum método precisa ser um dogma empresarial.

O que precisamos é entender bem os potenciais da equipe que temos, encontrar os pontos fracos e fortes, operar com isso. Valorizar a equipe financeiramente, garantir bons planos de cargos e salários, bons tempos de lazer e incentivo a estudo. Criar um bom ambiente para o trabalhador é das mais antigas e melhores garantias de sucesso numa equipe, além de tornar qualquer vaga de emprego na sua empresa algo realmente interessante, o que vai te permitir sempre ter melhores trabalhadores.

Simplificando: de nada adiantará você ser super aplicado em mil métodos de organização e planejamento estratégico de trabalho, se não consegue garantir valor material concreto para os seus trabalhadores.

Dito isso vou adentrar em outro modelo de organização, agora profissional e financeira:

1 – Pense o plano de cargos e salários dos seus trabalhadores de maneira que o trabalhador mais chão de fábrica possa alcançar, por tempo de serviço ou incremento de aprendizado, um salário similar a um trabalhador com especialização universitária. Por que não, seu encarregado de obras com 30 anos de empresa ter um salário igual o de um engenheiro pleno?

2- Garanta ao estagiário o direito ao aprendizado, tenha como meta um sistema de formação. Isso é algo básico do ser humano, aprendemos e ensinamos o trabalho, assim garantimos o legado.

3- Dê créditos a quem traz inovação, mesmo que seja o seu agente de limpeza do ambiente, se ele criou algo que gerou valor para sua empresa, valorize ele ao invés de assumir isso como autoria da corporação onde você (o dono) é a principal estrela.

4- Os tempos imperiais já terminaram, não escravize ou trate ninguém como escravo. Exemplo: pião não é categoria de trabalho, seu funcionário tem nome e tem expertise, trate-o como o profissional que é e te garanto que os resultados serão bem melhores pra você.

Com o básico, uma boa agenda já te organizará mais que um monte de aulas de coaches.

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Alguns desafios do plano Nova industrialização Brasil

O programa de reindustrialização do Brasil esbarra em alguns empecilhos que podem ser lidos como imensos desafios. Entre eles cito alguns: a melhoria dos centros nacionais de pesquisa e desenvolvimento, bens e recursos, custos de transações internacionais como logística de transporte.

Se o Reuni e Prouni acertaram precisamente a garantia de acesso universitário às camadas mais populares, errou muito ao deixar entregue ao mercado boa parte do capital investido em educação. Uma fala troncha que o presidente lançou falando sobre ter advogado demais no país é um bom reflexo disso. Um programa com o teor do Prouni e reuni, sem uma política estruturante em um país onde a maior segurança financeira vem de concursos públicos somado a cultura do cotidiano que sempre viu como emprego seguro ser advogado, médico ou professor gerou isso. Mudar esse cenário é um imenso desafio que exigirá uma reforma da educação pela base.

Retomando, os maiores ativos que uma indústria globalizada tem está em suas propriedades (patentes, intelectuais, físicas, patrimoniais etc.), localização e internacionalização. Dito isso, não há saída, a incapacidade que o país tem de desenvolver um campo decente e atrativo para pesquisadores nos coloca extremamente vulneráveis nas disputas internacionais. Creio que este é um investimento crucial para o plano dar certo, garantir que o maior bem que podemos ter é formar profissionais qualificados que se sintam interessados em permanecer vivendo e trabalhando no Brasil.

A fala troncha do Lula tem uma sinceridade intrínseca que aponta pra necessidade de o país formar este corpo intelectual e técnico de qualidade. Infelizmente, isso não se dará pela boa vontade dos grandes mercadores do sistema de educação que insistem em enxugar custos com cursos EAD e desvalorização completa de professores e de centros de pesquisa.

Construir uma política no Mercosul que de prioridade a uma saída de logística para o oceano pacífico, criando alternativa concreta ao canal do Panamá (globalmente falando) e alternativa de massa para alcançar parte significativa da América Latina. Há alguns projetos de ferrovia bioceânica, todos bem difíceis de realizar, porém que não deveríamos abandonar. Ainda mais em um momento em que a logística marítima sofre com a crise global. As tensões do mar vermelho devido às guerras no oriente médio e a seca do canal do Panamá tem gerado altas no preço do frete, o que torna propício quaisquer tentativas de negociar globalmente alternativas.

Ambas as saídas pedem do governo pulso e recursos altos, não são caminhos simples, mas são caminhos que precisam ser iniciados. Um plano de industrialização não nasce da noite para o dia e nem se finda em dois ou quatro anos, precisa de tempo e continuidade. Muito necessário ver isso quando vivemos uma era onde quaisquer intervenções globais, de grande porte de extração e mudança ambiental, pode afetar negativamente a capacidade do planeta existir.

Talvez o maior desafio de todos seja justamente convencer os corpos políticos que pensam o Brasil sob a tábula rasa do arrasa quarteirões a cada quatro anos de que precisamos construir um projeto que dure para mais gerações. Sem isso, ficaremos restritos a liberar apenas recursos primários como moeda de troca interessante para a indústria global, nos mantendo como eternos fornecedores de commodities.

Mapa da ferrocarril santiago-mendonza
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Favela! Uma vitória em meio a muitas lutas.

Importante o IBGE reconhecer a palavra FAVELA, depois de séculos de uso cotidiano do termo. Embora tenhamos um retrato extremamente estereotipado quando ouvimos, pois existem milhares de formas e jeitos de se organizar naquilo que chamamos favela. Por exemplo, reconhecemos lugares como a Cidade de Deus, um bairro formal do Rio onde foram construídos conjuntos habitacionais, como favela.

O peso do termo é a luta pela sobrevivência, pela vida. Para parte da opinião pública, Favela é o lugar onde o Estado tem o direito de matar sem julgamento, é o lugar que não deveria existir, onde parte-se do pressuposto da culpa. A favela incomoda e está certa, ela veio para incomodar mesmo. Não tem como o pobre ter direito a terra nesse país sem incomodar.

De Canudos, o embrião que forja o termo favela, aos Yanomamis, o enfrentamento ultrapassa qualquer tipo de discurso representativo. No Rio de Janeiro, lugar onde o termo favela nasceu, a terra é um elemento central na pauta desde a providência até as máfias que distribuem o poder atual da cidade. A luta pela terra é a história de formação deste país.

O rateio do espaço urbano e do espaço rural entre as forças da elite deste país um crime a humanidade. Sem contar que muitas destas relações são dadas na base da violência, ocupação de áreas de proteção, loteamentos, demarcações de latifúndios. Tudo que estiver no caminho destes caras vai sofrer a violência, legalizada e ilegalizada, armada ou não. O poder ruma todo imbricado nessa gente, verdadeiros caciques que espalham tentáculos em redes de parentesco. Desde as capitanias hereditárias o Brasil é um imenso caso de família. Quem manda aqui são os herdeiros da grilagem, dos privilégios, das corrupções que aumentam suas estruturas de poder. Aos expropriados da própria carne, sobra o sacrifício de se manter em um território forjado na barbárie. Sem a reforma agrária e a reforma urbana, esse país nunca vai ser capaz de construir quaisquer estruturas democráticas diferentes das que estão dadas.

imagem: página Madureira ontem e Hoje, Morro da Serrinha
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Reindustrializar o Brasil

Sobre o Plano de Ação da Neoindustrialização brasileira gostaria de comentar alguns pontos.

Primeiro, vejo com bons olhos o plano como uma alternativa de reaquecer o desenvolvimento nacional neste campo que segue esquecido. O programa vislumbra um sistema de reorganização nacional. Considero cedo para um grande ufanismo, mas considero uma boa caminhada para a saída da recessão e abertura de uma cadeia produtiva de trabalho que se mostra hiper necessária.

Sinto que, no Brasil real (e não no legal) as três primeiras missões estão o coração onde o governo vai focar o olhar: cadeias agroindustriais, complexo econômico industrial de saúde e infraestrutura voltada para integração produtiva. As outras seis missões pode ser que na prática caminhe meio a reboque.

No que compete a gente, pensar estrategicamente os clusters e cadeias industriais desse país pode movimentar todo o sistema. Historicamente a implementação de qualquer pólo fabril traz consigo uma série de modificações estruturantes pra atender, coisas como habitação pra trabalhadores, mobilidade logística pra translado de produtos, entre outros muitos fatores.

Outro ponto que afeta diretamente o nosso campo profissional está no olhar da construção como indústria. Isso pode viabilizar uma nova organização do nosso setor que encontra nos sistemas BIM as ferramentas primordiais para operar o setor de obras por outra lógica empresarial, reduzindo-se os pequenos e médios escritórios que não conseguiriam suportar os custos de manutenção e criando-se corporações mais robustas que abraçarão via CNPJ estes médios e pequenos operários. Ok, é apenas um futurismo pensar assim, mas é um futuro viável de ser deduzido.

O estímulo do capital estrangeiro poderá ser um motor de giro desse plano, porém isso não parece significar um compromisso real com o resultado social. E aí vejo alguns grandes enfrentamentos que o governo precisará ter disposição de fazer:

  1. Transformar parte do resultado dos investimentos internacionais e projetos de desenvolvimento social para o país.
  2. Ter muito cuidado para que a Política Nacional de Exportação e facilitação de relações com o comércio exterior pese positivamente para o país
  3. Principal, cuidar para que a economia de mercado não faça um papel avassalador de retirada de todo e qualquer bem-produzido do país sem deixar benefícios para nós. Em especial o extrativismo territorial, degradação ambiental, entre outros.

Temos dificuldades de lidar com questões que envolvem investimento estrangeiro. Muito se dá por conta de a história deste país ter sido formada pela exploração estrangeira sobre seus recursos básicos e povo. Porém cabe a nós tentarmos tomar as rédeas de nossas diretrizes nas mãos.

Resumindo, como todo bom Plano, o que mostrará o sucesso é a capacidade de ser aplicado. A nós, neste momento, creio que neste momento cabe identificar as interfaces potentes e as possíveis lutas que serão necessárias de traçar.

Mais importante que ler minha opinião porém é, ler o documento final que se encontra neste link.

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Foi um Rio que passou em minha vida

Um dia vou ouvir esta música e talvez não esteja mais nesta terra. Desde tempos de Brasil colônia a Brasil Democracia vivemos num município que sente constante falta de água potável e que, nos anos seguintes (principalmente pós urbanos) é servido com trágicos processos de enchente. A conta não fecha: como podemos não ter água potável em uma cidade que sofre com as cheias de inúmeros rios de água doce?

Matamos duas Baías (Guanabara e Sepetiba) afundamos a pesca, afundamos a vida ribeirinha e balneária. Matamos os portos e a navegabilidade. As bacias do Sarapuí, Meriti, Pavuna, Acari, Irajá, Faria Timbó, Ramos, Carioca, entre outros, muitos cobertos, foram escondidos, outros abandonados. Cada cheia vem o jornal com matérias, povo joga lixo, ninguém liga, a culpa é do morador. Na real é maior que isso, a culpa é de uma cultura que desde os tempos de Cabral 1 não se importou tanto com isso e que impregnou em todos nós que Rio é valão.

Ok, podemos passar pano, o senso de preservação da natureza é recente. Recente para quem? Os originários desta terra, assim como os das terras africanas tinham uma relação divina e transcendente com os rios. Nós perdemos esse carinho em algum momento da história.

Quem já deixou um Bougainville abandonado sabe que a natureza não é moral, ela seguirá livre seu rumo. Se você não foi capaz de navegar com ela, ela pode te derrubar, sendo bonita e violenta ao mesmo tempo. A crise ambiental bate na porta, calor e chuva aqui, frio forte no ártico, temperaturas locais mais extremas e a natureza vai cobrar os erros humanos.

A maior parte do povo, aquele que vê as adutoras do Guandu passarem na porta da casa deles e levar água potável pra zonas abastadas da cidade enquanto eles ficam sem água, acordou alagado pelos rios que também poderiam abastecer suas casas se fossemos um país de projeto político sério.

Mas, sinceramente, cabe ao povo abraçar para si a solução. Se o povo que mais sofre não for capaz de abraçar o seu lugar, os seus rios e tirar ou cobrar na marra a solução para o problema, o futuro dele vai ser a morte, pela cheia ou pela seca. Aqueles que deveriam ter feito e só te visitam depois da tragédia não vão fazer muito além.

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Metrô Linha 2 e a crônica de uma estação ausente

Todo mundo que usa a Linha 2 do Metrô Rio sente uma distância diferente entre Triagem e Maria da Graça. Parece-nos uma viagem maior que entre outras estações.

Isso tem um motivo de ser: entre ambas as estações existe uma ausente, justamente a que atenderia a galera do Jacaré/jacarezinho e adjacências. Confesso que não sei precisar se em algum momento houve o pensamento de instalação e quais os motivos políticos e técnicos levaram a mesma a não rolar, a função principal deste texto não é investigar isso, mas colocar a pulga atrás da orelha.

Enquanto temos bairros na cidade que são servidos por mais de uma estação, chegando a três ou quatro como o é o caso da Tijuca que tem Uruguai, Saens Pena, S. Francisco Xavier e Afonso Pena, temos regiões e bairros que conseguem ver o bonde passar, mas não podem pegar.

Mas isso não é estranho para a vida dos moradores do Jacaré, afinal, todo verão eles sabem que pegar o 474 para chegar na praia não é garantia de uma viagem em paz. Boas-vindas do Rio, esta cidade hospitaleira que recebe o turista de braços abertos é o mesmo onde as forças policiais param um transporte público e decidem quem pode ou não seguir viajando dentro deste. Alegam-se mil motivos como arrastões, assaltos, baderna, todos eles crimes imaginados, visto que as ações policiais ocorrem antes mesmo dos ditos “suspeitos” chegaram à cena do tal crime. Talvez tenhamos desenvolvido algo novo no que tange a política, algo tipicamente carioca, uma espécie de serviço de segurança mediúnico capaz de prever com dose de certeza que quaisquer moradores de um bairro vão fazer algo que não deva ser feito.

Resumindo, o que o poder diz é que este lugar não tem direito a se mover para além de seus limites.

Deixo meu abraço de solidariedade a todos os moradores deste bairro que deveria ter uma estação de metrô e não tem, que deveria ter uma atenção do Estado e não tem, que deveria ter o direito de ir a praia e não pode. Se você tem medo do Jacaré, que bom! É pra temer mesmo do povo que sofre todo dia a violência legalizada do Rio. 

Desejo estar vivo para Ver a GE virar o Parque Jacarezinho e poder chegar lá de metrô descendo na Estação Jacaré.

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A fé que governa o tempo – feliz 2024

Na fé ancestral africana, Iroko é quem governa o tempo. O tempo, esse que corre fugidio das nossas mãos assim como para e finca raízes. No evangelho o tempo é o próprio Cristo nascido, morto e ressuscitado, o tempo no próprio corpo. O tempo que é vida em movimento.

O tempo que nos é surrupiado, o tempo que passa, o tempo que gira e nos faz parecer que sempre há uma chance a mais. Quem melhor fala de tempo nos textos bíblicos provavelmente foi Eclesiastes; Tudo fez formoso em seu tempo; também pôs o mundo no coração do homem (…) Já tenho entendido que não há coisa melhor para eles do que alegrar-se e fazer bem na sua vida (…) O que é, já foi; e o que há de ser, também já foi. Futuro e passado dizem que olhar para a frente é olhar para os que já estavam.

Nas areias a beira mar, os corpos celebram na fé, lado a lado, o renovo da esperança e o mar a todas as vozes recebe. Pois, nos versos do compositor, “Na beira do mar, o bem, é o mar que carrega com a gente”.

Que neste dia de grande beleza e esperança, ecoe esse pequeno desejo: que a gente recupere o direito ao tempo que nos é roubado, e que vivamos e celebremos o tempo, ou melhor, os muitos tempos que conseguimos viver no tempo. Como o rio que nasce, cresce, se espalha, vira vapor, vira chuva, alimenta terras, desemboca na foz e se transmuta em parte de oceano e parte volta para a nascente. Que a vida seja esse grande ciclo complexo chamado tempo, do qual, nenhum de nós conseguirá assumir a totalidade, pois somos meros grãos de areia na imensidão do universo que a gente respeita e contempla sem precisar ter as rédeas do controle. “Não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros”.

Mesmo que a vida seja instável, como toda vida é, a gente vai navegando junto, lado a lado, ainda que por fora tudo pareça antagônico, lá no fundo a fé que nos move há de ser a mesma, e já que cito mil poetas, pq não parafrasear mais um e desejar a todos que recebam todas as cores desta vida e todos os sorrisos que puderem sorrir. Feliz 2024.

imagem: umbandistas e pentecostais na praia, ano novo 2024.

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Notre-Dame de Paris, literatura, arquitetura, vida

Uma das mais belas críticas a arquitetura que já li se chama Nodre-Dame de Paris de Victor Hugo. No livro terceiro, quando expõe seu desencanto com os processos de mudança na arquitetura do Templo, ressalta quão nocivos são o tempo, as mudanças políticas coléricas, mas principalmente as modas estéticas decadentes.

“As modas fazem mais mal que as revoluções. Elas dissecaram o vivo, atacaram a medula óssea da arte, (…)” cita o autor. Victor Hugo nos traz nessa obra a importância do valor estético do gótico, do medievo e da vida periférica. Seus principais personagens: A arquitetura, a cigana, a pessoa com deficiência e o arquidiácono. No triângulo trágico da história temos duas pessoas que vivem a margem da sociedade e que passam por uma complexa relação de controle e manipulação do representante da institucionalidade (o livro é imensamente mais amplo que isso, leiam). A arquitetura é valorizada por ser incompleta (como o autor cita) por ser algo que representa uma transição de tempos. O tempo expresso nas rusgas, nas mudanças dos adornos e do altar, são denunciados como uma violência a obra e aos modos de vida da época.

No debate de patrimônio, a obra teve peso após o incêndio que afetou a catedral. Da literatura para a vida, o livro diz: Há algo de valor na arquitetura e na vida marginal, uma ética.

Os pobres, que dão vida e espírito ao lugar (catedral) Quasimodo, cuja falta de beleza e deficiência o torna um pária, traz o amor altruísta e o sacrifício de si, esmeralda, rejeitada por sua condição marginal no povo representa uma liberdade impossível dentro dos cânones sociais e frollo que vê sua moral abalada pelo desejo de possuir o que não tem é o representante do poder em seu eterno conflito. Frollo, o diácono arquiteto da catedral opera obcecado pelo ser-livre da cigana, uma liberdade que só é possível quando nossa existência acontece para além das fronteiras, uma liberdade marginal. É isso que conforma a arquitetura da catedral, entre o espaço construído e o vivído (ainda que vivido nos textos de Victor Hugo).

Com olhar sensível, Victor Hugo torna visível a potencia marginal, os conflitos sociais e o papel da arquitetura nesse entremeio. E nos ensina que preservar arquitetura não é só manter fachada, mas saber como contar a história da nossa existência a partir daquela obra construída.

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Um pensar científico para os dias de hoje

Já se foi o tempo em que pesquisa científica era o espaço de grandes tratados e personagens icônicos. A imagem do gênio e sua descoberta que vemos até hoje por aí talvez não caiba mais na complexidade da vida contemporânea, ao menos não com a mesma qualidade que já fora um dia. Não falo isso desmerecendo os grandes nomes que já passaram na terra, apenas comentando sobre a readequação social do campo e da comunidade científica. É mister desmistificar este raciocínio do ser iluminado, como se não houvesse produção constante e historicidade nas trocas e descobertas.

Partindo deste ponto, vejamos aonde podemos chegar. As crises remodelam o mundo, e na década de 80 uma crise de saúde apareceu e ajudou a repensar os modelos de ciência, a AIDS. O advento da epidemia de AIDS, a comunidade científica operacionalizou suas ações junto a sociedade civil de uma forma interessante, enxergou a necessidade de trabalhar em conjunto com movimentos sociais, ativistas e diversos outros grupamentos. A lógica não era apenas laboratorial e a interdisciplinaridade ganhou um novo patamar e constituiu um paradigma.

A partir dos anos 80 fazer ciência implicava em reconhecer o diálogo com diversos atores sociais e as mais amplas expressões de conhecimento. Incluímos na pauta o âmbito social, sem o qual se tornaria inviável alguns avanços. Recentemente, vivemos a pandemia de COVID, e graças ao acúmulo destes estudos de método, somados a coragem de expansão de novas modelagens de pesquisas, a comunidade científica gerou um novo salto. Claro que abrimos a ressalva de que, como em qualquer relação social complexa, não podemos esconder que há no campo relações de racismo, misoginia e disputas de hegemonia e poder onde verdadeiras máquinas de pesquisa são engendradas por grandes captadores e fomentadores de recursos para pesquisas.

Quando o globo precisa se focar em segurar a pandemia, a ciência se sente obrigada a romper com alguns padrões. Um dos mais importantes que gostaria de destacar é a abertura dos dados, toneladas de dados, artigos, testes, eram abertos independente de passar por revisão de pares e publicações, a troca em rede se tornou o novo paradigma. Pela primeira vez no mundo, se viu de forma expressiva a comunidade científica trocar tamanho volume de informação em tão pouco tempo, quase que o brainstorm global de pensamento e estudo. Todos tínhamos acesso, mesmo não pesquisadores conseguiram encontrar com facilidade.

Para além disso, o tripé: política-economia-ciência precisou operar em nível global. Talvez esta tenha sido uma das maiores dificuldades, pois precisamos lidar com inúmeras disputas que iam desde a luta pela quebra de patentes até guerras políticas locais que se usavam dos resultados científicos como palanque constante. Apesar dos conflitos, creio que este seja o grande paradigma: precisamos incluir a desigualdade social como uma dimensão constante nas discussões e pesquisas. Segundo a pesquisadora Andrea Silva, “pessoas com maior nível de pobreza têm 55% maior risco de evoluir do HIV para Aids”, só para citar uma pesquisa que revela o quanto as desigualdades sociais impactam ainda hoje no cuidado de uma doença que deveria ter um tratamento universal. Podemos compor o mesmo debate quando vivemos a pandemia de COVID. Ainda hoje a África é o continente com menor taxa global de vacinação, temos 70% da população do continente não vacinada.

No Brasil, uma das maiores missões se passou na fase inicial da pandemia, quando o país mostrou o tamanho de sua vulnerabilidade: falta de saneamento e acesso a água potável e falta de condições de seguridade social para garantir períodos de lockdown demonstraram o quanto ainda estamos com o tripé político, econômico e científico desconectados.

Apesar das inúmeras mudanças algo se mantém, o desejo de se lançar ao desconhecido. Talvez essa seja a grande graça da aventura da pesquisa, quando a gente se lança ao risco do desconhecido e das incertezas para investigar e achar elementos que seguirão nos mantendo nas incertezas. Aqui me permito uma alegoria poética, olharmos para o campo da ciência como um horizonte de eventos, onde cada um de nós seja um pequeno fóton girando rumo a singularidade que nos interessa. O mais bacana é ver que, nada na ciência é possível sem uma rede global de trabalhadores e ferramentas unidos em torno da aventura.

Espero que o modelo da ciência aberta siga, cada vez mais interdisciplinar, sem ficar presa em patentes, premiações e títulos de valores e se torne um dia o paradigma de organização do pensamento e da criação humana.

Entendo que, em um mundo onde os modelos econômicos e estruturais da sociedade ainda prezam por relações de competição, individualismos, e transformação de inovações em propriedades de direito privado, outras formas de se organizar demorem a conseguir espaço. Porém, a pandemia nos mostrou com muita clareza as vantagens da ruptura dos modelos tradicionais de organização do trabalho científico.

Almejo viver num mundo onde pensar e trabalhar cientificamente seja explorar as mais inesperadas redes de colaboração, inserir o trabalho sobre o social e termos a responsabilidade de entender que os nossos resultados impactam vidas. Vimos o quanto ganhamos com isso enquanto humanidade.

Foto 51 DNA por Rosalind Franklin e foto do Buraco Negro do centro da galáxia M87 resultado do trabalho coletivo de mais de 200 pesquisadores.
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Arquitetura e Urbanismo, política

Agbogbloshie, Gana, a questão dos subúrbios, metrópoles e exploração

A questão da cidade é global. Estamos acostumados com os grandes estudos metropolitanos que envolvem mega arquiteturas, grandes intervenções urbanas, entre outros. Hoje queria apresentar uma questão peculiar, mas não menos importante.

Agbogbloshie é um subúrbio de Accra, cidade de Gana. Primeiro pra contextualizar, estamos falando de um país da África Oeste cuja história é demarcada por violentos processos de colonização, exploração de recursos e escravidão. Estes processos seguem até hoje, quando, dentro das lógicas da divisão internacional do trabalho, o país segue como produtor de minérios e agricultura e como um grande consumidor de produtos industriais de segunda ou terceira mão. E é nestas condições que vamos partir de Gana, um tipo de país de subúrbio global para Agbogbloshie, um subúrbio de Gana.

Num dado momento, o País propôs incentivar, como tentativa de abastecer o mercado interno, a importação de eletroeletrônicos usados (como faz com automóveis por exemplo). Uma proposta que, vista sem crítica, parece inocente e até promissora se transformou em um dos maiores problemas do país. Hoje, Gana abriga um dos maiores lixões de eletroeletrônicos do planeta, servindo de escoamento internacional para este ciclo de mercadoria. Falamos aqui de um ciclo que ainda é alimentado pelo movimento da obsolescência programada, criando um dos maiores problemas humanitários da região.

Uma quantidade significativa de cidadãos Ganenses sobrevive de um verdadeiro comércio de lixo tóxico, resultado de um descarte que para maioria de nós é invisível. A propaganda da sustentabilidade nos vende uma gama de discursos sobre indústria carbono zero, elementos reciclados, baixo consumo de água, mas pelo visto, são regras e códigos que só aparecem nas fotos do Vale do Silício. A imagem de simplicidade expressa no New Balance do Steve Jobs ou no Brunello Cucinelli de Zuckerberg cujo luxo silencioso esconde o silencio do lixão do Silício.

Aqui gostaria de propor um pensamento singular. Por um momento abandonemos o conceito de cidade ou metrópole como assumimos em nossas mentes e vamos realocar as fronteiras pelos fluxos e redes. Por um determinado recorte de tempo e espaço, Agbogbloshie é uma periferia de uma metrópole do Vale do Silício, sua destruição é aceitável desde que a roda da fortuna gire e a sustentabilidade se dará apenas sobre o meu quintal. Esta leitura que falseia o próprio senso da natureza, onde o todo é um só indivisível e onde não há um fora. Este subúrbio que é resultado de um movimento político internacional pesa, e pesa ainda mais quando está em um País que exporta ouro, pedras preciosas e demais minérios.

É possível que o custo do luxo silencioso de uma camisa do Zuckerberg mate a fome por um dia dos moradores de Agbogbloshie. Esta é a metrópole que me proporei a debater em breve, uma metrópole cujas principais fronteiras estão nas redes de poder que a impactam.

Foto de Andrew McConell para o jornal The Guardian.
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